Annua Gaudia / Longa Florata
A música do Caminho do Santiago





UFF - AA 500 - NM232199
1999







Cantigas de Santa Maria
1. De grad' a Santa Maria  [1:49]   CSM 253
instrumental


Codex Calixtinus
2. Annua gaudia  [3:33]   cc 99
3. Psallat chorus  [1:23]   cc 2
4. Congaudeant catholici  [3:24]   cc 96


Cantigas de Santa Maria
5. Non é gran cousa  [8:41]   CSM 26
6. Non dev' entrar null' ome  [5:58]   CSM 217
7. A virgen Santa Maria  [8:25]   CSM 8


Codex Las Huelgas
8. Maria virgo  [3:44]  Hu 52
9. Eya mater fidelium  [7:26]  Hu 59
Prosa de Santa Maria
10. Cleri cetus  [1:49]  Hu  14


Cantigas de Santa Maria
11. Non sofre Santa Maria  [6:00]   CSM 159






LONGA FLORATA

integrantes
Lenora Pinto Mendes, vielas de arco e de roda
Leonardo Loredo, barítono, oud e buzuk
Márcio Paes Selles, barítono, flauta
Sônia Leal Wegenast, soprano, harpa e percussão

músicos convidados
Pedro Hasselmann Novaes, viela de arco e gaita de fole
Peri Santoro, barítono

participação
Emilia Cassiano, soprano
Marcus Vinícius Urago, tenor

e

Rebeca Pinheiro, soprano
Kátia Dias, soprano









ficha técnica
Gravação, mixagem e masterização: E&G Stúdío
Gravação:Florencia Saravia, Zelly Mansur e Gilberto Susano
Mixagem e masterização: Geraldo Brandão
agradecimento: Gilson Oliveira Cruz e Haimo Blink
Foto: Humberto Medeiros
Programação visual: Carlota Rios
Produção gráfica: NAPE/DEPEXT/SR-3/UERJ

Universidade Federal Fluminense
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Produzido pelo NÚCLEO DE ESTUDOS GALEGOS DA UFF
Diretora: Maria do Amparo Tavares Maleval
Apoio: PROGRAMA DE ESTUDOS GALEGOS DA UERJ
Patrocinio: XUNTA DE GALICIA
1999
NM232199









DEVOÇÃO MARIANA NOS CAMINHOS DE SANTIAGO

Maria do Amparo Tavares Maleval (UFF-UERJ)

O conjunto Longa Florata, com a participação de componentes do Música Antiga da UFF e de outros artistas convidados, põe agora ao nosso alcance alguns dos cânticos entoados no Caminho de Santiago na Idade Média, ou com a peregrinatio ocidental relacionados. Louvável empresa, que, graças ao patrocínio do governo da Galiza, através do Núcleo de Estudos Galegos da UFF e do Programa de Estudos Galegos da UERJ, insere-se nas comemorações que cercam o último ano xacobeu do milênio - ano santo, de indulgência plena para os que peregrinarem a Compostela, instituído pelo Papado para os anos em que o dia do Apóstolo, 25 de julho, acontece num domingo.

Este CD reúne alguns preciosos exemplos de cânticos medievais produzidos ao redor da catedral de Santiago de Compostela, principal centro de devoção ocidental no século XII, documentados no chamado Códice Calixtino, acrescidos de peças compostas no Mosteiro de las Huelgas, na rota de peregrinação jacobéia, e de alguns milagres marianos acontecidos com peregrinos, do Cancioneiro de Alfonso X, de Leão e Castela.

Os hinos Annua Gaudia, Psalat Chorus e Congaudeant Catholici, todos de louvor ao Apóstolo Tiago Maior, são do Liber Sancti Iacobi, chamado de Calixtino por motivo da atribuição, falsa, ao Papa Calixto II da autoria do mesmo. Manuscrito redigido entre 1139 e 1173, na chamada Era
Compostelana, fruto do fecundo episcopado de Diego Xelmírez (1100-1140), que teve o beneplácito da poderosa Abadia borgonhesa de Cluny, compõe-se de cinco livros. No primeiro deles, ao lado de missas, homilias e outras atividades litúrgicas destinadas ao culto do Apóstolo, se encontram os cânticos jacobeus, que se registram também no final do Códice, após o Livro V. Apesar de serem na maioria monódicos, aí se observam preciosos documentos da música polifônica em seus primórdios, a meio caminho entre a produção de Saint Martial de Limoges e a de Notre Dame de Paris. Os demais livros são também dedicados à propaganda jacobéia - milagres de São Tiago, lendas acerca da traslatio do seu corpo degolado na Palestina e da descoberta do seu túmulo em Compostela pelo bispo Teodomiro no século IX, lendas relacionando Carlos Magno à defesa deste Santo Sepulcro e da Hispania contra o Islão - e ao fenômeno da peregrinatio à venerável tumba compostelana, através do Guia Medieval do Peregrino, seu quinto livro, possivelmente da autoria do clérigo franco Aymeric Picaud, que aí narraria a sua experiência do Caminho.

As peças Maria Virgo, Cleri Cetus, Psalate Eya, Mater Fidelium, todas de invocação e louvação à Virgem, são do Códice do Mosteiro de Las Huelgas, em Burgos (séculos XIII-XIV). Dito mosteiro foi um importantíssimo centro político-cultural do Caminho para Santiago, fundado em 1180 por Alfonso VIII e sua esposa D. Leonor para abrigar monjas cistercienses e filhas de nobres. Aí aconteciam as cerimônias mais pomposas da aristocracia (enterros, casamentos, proclamações reais, etc). O seu Códice, só descoberto em 1904, reconhecido como uma das principais fontes da polifonia medieva, contém, além de 46 composições monódicas e 1 sem notação musical, 139 peças polifônicas, das quais a maioria (89) é a duas vozes, 49 a três vozes e 1 a quatro vozes. Possui notação francesa, e apresenta exercícios de solfejo que são claros indícios de que as monjas praticavam o canto, contribuindo para derrubar a crença, que perdurou até há bem pouco (com base na misoginia de Paulo, que recomendava o silêncio para as mulheres), de que nos mosteiros femininos não se cantava e que o canto gregoriano era prerrogativa masculina.

Quanto às restantes músicas deste CD, são monofônicas, e se inscrevem nos 427 espécimes, documentados, com algumas poucas repetições, no Cancioneiro elaborado na corte do Rei Sábio, de Leão e Castela (1221-1284). As cantigas de Santa Maria aí coligidas, no século XIII, se dividem em louvores e narrativas de milagres. Constituem um dos mais importantes documentos da monodia medieval.

À primeira vista semelha impróprio que num CD, dedicado ao Caminho de Santiago, apareçam tantos cânticos marianos. No entanto, lembramos que o culto à Virgem esplendeu no século XII, que foi também a época do apogeu compostelano. Assim, as estradas para Compostela ficaram pontilhadas de santuários dedicados à Mãe de Jesus, como por exemplo a catedral de Notre-Dame, em Paris. Além do mais, o culto jacobeu liga-se ao de Nossa Senhora da Barca, nitidamente galego: diz a lenda que o Apóstolo encontrava-se extremamente desanimado com a sua pregação aos galaicos; dirige-se, então, à Costa da Morte para meditar, quando recebe a visita reconfortante de Maria, que ainda vivia na Palestina, de onde viera para a costa galega numa barca de pedra. A partir daí, foi erguido no local (Muxía) um santuário da Barca, que atrairia peregrinos para além de Compostela, a Muxía e Finisterra.

Portanto, justifica-se a presença até mesmo de milagres marianos no Caminho de Santiago. Num deles, a intervenção de Maria é invocada pelo
próprio Santo: à Virgem pede pela alma do "romeu" que foi levado ao suicídio pelas artimanhas do demo, após cometer o pecado da fornicação; a "que non á par" faz a alma retornar ao corpo para, através da penitência, ser salva. Isto é o que diz a cantiga Non é gran cousa. Já na cantiga Non dev'entrar null' orne narra-se como um conde da França é impedido de entrar na Igreja de Santa Maria de Vila-Sirga, enquanto não se confessasse. A igreja fica na rota compostelana, e o castigo serve para todo peregrino que não esteja preparado, contrito, para entrar no santuário de sua devoção. Na cantiga A Virgem Santa Maria apresenta-se o milagre da candeia que desce até à viola do jogral que cantava para a Virgem, com o que ela lhe demonstrava o seu agrado. Isto acontecera em Rocamador, um dos mais afamados pontos do Caminho Francês para Santiago. Aí também ocorreria o milagre narrado na cantiga Non sofre Santa Maria, que mostra a sua proteção aos "romeus" ao possibilitar a descoberta de uma posta de carne que lhes havia sido furtada pela servente, num albergue.

Enfim, Maria esplende nos itinerários de Compostela. Como, aliás, em todas as realizações da Igreja. Até porque, para o seu culto, foram canalizados antigos ritos consagrados a poderosas divindades femininas, quem sabe ainda praticados à roda do século XII, mariano e jacobeu por excelência. Ao Longa Florata e seus convidados só temos a agradecer, pela possibilidade de reflexão a que nos induz o seu belo repertório mas, sobretudo, por evocarem, através da música sacra, de forma tão linda e oportuna neste ano jacobeu, os áureos tempos da peregrinatio ocidental, hoje novamente em voga.

Nota: Para as músicas do Calixtino os intérpretes se basearam no fac-símile do Códice. Para as demais, nas transcrições de H. Angles.