Maria do Amparo Tavares Maleval (UFF-UERJ)
O
conjunto Longa Florata, com a participação de componentes do Música
Antiga da UFF e de outros artistas convidados, põe agora ao nosso
alcance alguns dos cânticos entoados no Caminho de Santiago na Idade
Média, ou com a peregrinatio ocidental relacionados. Louvável
empresa, que, graças ao patrocínio do governo da Galiza, através do
Núcleo de Estudos Galegos da UFF e do Programa de Estudos Galegos da
UERJ, insere-se nas comemorações que cercam o último ano xacobeu do
milênio - ano santo, de indulgência plena para os que peregrinarem a
Compostela, instituído pelo Papado para os anos em que o dia do
Apóstolo, 25 de julho, acontece num domingo.
UFF - AA 500 - NM232199
1999
Cantigas de Santa Maria
1. De grad' a Santa Maria [1:49]
CSM 253
instrumental
Codex Calixtinus
2. Annua gaudia [3:33]
cc 99
3. Psallat chorus [1:23]
cc 2
4. Congaudeant catholici [3:24]
cc 96
Cantigas de Santa Maria
5. Non é gran cousa [8:41]
CSM 26
6. Non dev' entrar null' ome [5:58]
CSM 217
7. A virgen Santa Maria [8:25]
CSM 8
Codex Las Huelgas
8. Maria virgo [3:44]
Hu 52
9. Eya mater fidelium [7:26]
Hu 59
10. Cleri cetus [1:49]
Hu 14
Cantigas de Santa Maria
11. Non sofre Santa Maria [6:00]
CSM 159
LONGA FLORATA
integrantes
Lenora Pinto Mendes, vielas de arco e de roda
Leonardo Loredo, barítono, oud e buzuk
Márcio Paes Selles, barítono, flauta
Sônia Leal Wegenast, soprano, harpa e percussão
músicos convidados
Pedro Hasselmann Novaes, viela de arco e gaita de fole
Peri Santoro, barítono
participação
Emilia Cassiano, soprano
Marcus Vinícius Urago, tenor
e
Rebeca Pinheiro, soprano
Kátia Dias, soprano
ficha técnica
Gravação, mixagem e masterização: E&G Stúdío
Gravação:Florencia Saravia, Zelly Mansur e Gilberto Susano
Mixagem e masterização: Geraldo Brandão
agradecimento: Gilson Oliveira Cruz e Haimo Blink
Foto: Humberto Medeiros
Programação visual: Carlota Rios
Produção gráfica: NAPE/DEPEXT/SR-3/UERJ
Universidade Federal Fluminense
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Produzido pelo NÚCLEO DE ESTUDOS GALEGOS DA UFF
Diretora: Maria do Amparo Tavares Maleval
Apoio: PROGRAMA DE ESTUDOS GALEGOS DA UERJ
Patrocinio: XUNTA DE GALICIA
1999
NM232199
DEVOÇÃO MARIANA NOS CAMINHOS DE SANTIAGO
Este CD reúne alguns
preciosos exemplos de cânticos medievais produzidos ao redor da
catedral de Santiago de Compostela, principal centro de devoção
ocidental no século XII, documentados no chamado Códice Calixtino,
acrescidos de peças compostas no Mosteiro de las Huelgas, na rota de
peregrinação jacobéia, e de alguns milagres marianos acontecidos com
peregrinos, do Cancioneiro de Alfonso X, de Leão e Castela.
Os hinos Annua Gaudia, Psalat Chorus e Congaudeant Catholici, todos de louvor ao Apóstolo Tiago Maior, são do Liber Sancti Iacobi, chamado de Calixtino
por motivo da atribuição, falsa, ao Papa Calixto II da
autoria do mesmo. Manuscrito redigido entre 1139 e 1173, na chamada Era
Compostelana,
fruto do fecundo episcopado de Diego Xelmírez (1100-1140), que teve o
beneplácito da poderosa Abadia borgonhesa de Cluny, compõe-se de cinco
livros. No primeiro deles, ao lado de missas, homilias e outras
atividades litúrgicas destinadas ao culto do Apóstolo, se encontram os
cânticos jacobeus, que se registram também no final do Códice, após o
Livro V. Apesar de serem na maioria monódicos, aí se observam preciosos
documentos da música polifônica em seus primórdios, a meio caminho entre
a produção de Saint Martial de Limoges e a de Notre Dame de Paris. Os
demais livros são também dedicados à propaganda jacobéia - milagres de
São Tiago, lendas acerca da traslatio do seu corpo degolado na
Palestina e da descoberta do seu túmulo em Compostela pelo bispo
Teodomiro no século IX, lendas relacionando Carlos Magno à defesa deste
Santo Sepulcro e da Hispania contra o Islão - e ao fenômeno da peregrinatio à venerável tumba compostelana, através do Guia Medieval do Peregrino,
seu quinto livro, possivelmente da autoria do clérigo franco
Aymeric Picaud, que aí narraria a sua experiência do
Caminho.
As peças Maria Virgo, Cleri Cetus, Psalate Eya, Mater Fidelium,
todas de invocação e louvação à Virgem, são do Códice do Mosteiro de
Las Huelgas, em Burgos (séculos XIII-XIV). Dito mosteiro foi um
importantíssimo centro político-cultural do Caminho para Santiago,
fundado em 1180 por Alfonso VIII e sua esposa D. Leonor para abrigar
monjas cistercienses e filhas de nobres. Aí aconteciam as cerimônias
mais pomposas da aristocracia (enterros, casamentos, proclamações reais,
etc). O seu Códice, só descoberto em 1904, reconhecido como uma das
principais fontes da polifonia medieva, contém, além de 46 composições
monódicas e 1 sem notação musical, 139 peças polifônicas, das quais a
maioria (89) é a duas vozes, 49 a três vozes e 1 a quatro vozes. Possui
notação francesa, e apresenta exercícios de solfejo que são claros
indícios de que as monjas praticavam o canto, contribuindo para derrubar
a crença, que perdurou até há bem pouco (com base na misoginia de
Paulo, que recomendava o silêncio para as mulheres), de que nos
mosteiros femininos não se cantava e que o canto gregoriano era
prerrogativa masculina.
Quanto às restantes músicas deste CD, são
monofônicas, e se inscrevem nos 427 espécimes, documentados, com
algumas poucas repetições, no Cancioneiro elaborado na corte do Rei
Sábio, de Leão e Castela (1221-1284). As cantigas de Santa Maria aí
coligidas, no século XIII, se dividem em louvores e narrativas de
milagres. Constituem um dos mais importantes documentos da monodia
medieval.
À primeira vista semelha impróprio que num CD, dedicado
ao Caminho de Santiago, apareçam tantos cânticos marianos. No entanto,
lembramos que o culto à Virgem esplendeu no século XII, que foi também a
época do apogeu compostelano. Assim, as estradas para Compostela
ficaram pontilhadas de santuários dedicados à Mãe de Jesus, como por
exemplo a catedral de Notre-Dame, em Paris. Além do mais, o culto
jacobeu liga-se ao de Nossa Senhora da Barca, nitidamente galego: diz a
lenda que o Apóstolo encontrava-se extremamente desanimado com a sua
pregação aos galaicos; dirige-se, então, à Costa da Morte para meditar,
quando recebe a visita reconfortante de Maria, que ainda vivia na
Palestina, de onde viera para a costa galega numa barca de pedra. A
partir daí, foi erguido no local (Muxía) um santuário da Barca, que
atrairia peregrinos para além de Compostela, a Muxía e Finisterra.
Portanto,
justifica-se a presença até mesmo de milagres marianos no Caminho de
Santiago. Num deles, a intervenção de Maria é invocada pelo
próprio
Santo: à Virgem pede pela alma do "romeu" que foi levado ao suicídio
pelas artimanhas do demo, após cometer o pecado da fornicação; a "que
non á par" faz a alma retornar ao corpo para, através da penitência, ser
salva. Isto é o que diz a cantiga Non é gran cousa. Já na cantiga Non dev'entrar null' orne
narra-se como um conde da França é impedido de entrar na Igreja de
Santa Maria de Vila-Sirga, enquanto não se confessasse. A igreja fica na
rota compostelana, e o castigo serve para todo peregrino que não esteja
preparado, contrito, para entrar no santuário de sua devoção. Na
cantiga A Virgem Santa Maria apresenta-se o milagre da candeia
que desce até à viola do jogral que cantava para a Virgem, com o que ela
lhe demonstrava o seu agrado. Isto acontecera em Rocamador, um dos mais
afamados pontos do Caminho Francês para Santiago. Aí também ocorreria o
milagre narrado na cantiga Non sofre Santa Maria, que mostra a
sua proteção aos "romeus" ao possibilitar a descoberta de uma posta de
carne que lhes havia sido furtada pela servente, num albergue.
Enfim,
Maria esplende nos itinerários de Compostela. Como, aliás, em todas as
realizações da Igreja. Até porque, para o seu culto, foram canalizados
antigos ritos consagrados a poderosas divindades femininas, quem sabe
ainda praticados à roda do século XII, mariano e jacobeu por excelência.
Ao Longa Florata e seus convidados só temos a agradecer, pela
possibilidade de reflexão a que nos induz o seu belo repertório mas,
sobretudo, por evocarem, através da música sacra, de forma tão linda e
oportuna neste ano jacobeu, os áureos tempos da peregrinatio ocidental,
hoje novamente em voga.
Nota: Para as músicas do Calixtino
os intérpretes se basearam no fac-símile do
Códice. Para as demais, nas transcrições de H.
Angles.